sábado, 18 de junho de 2011

TCC DE AMANDA DAYSE OLIVEIRA DIAS


A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE[1]


DIAS, Amanda Dayse Oliveira[2]
SILVA, Alba Valéria Niza[3]

Resumo

O presente artigo pretende investigar alguns poemas do livro Alguma Poesia, do autor Carlos Drummond de Andrade, com o objetivo de analisar a mulher dentro do Modernismo e discutir os desdobramentos e articulações de uma das imagens mais recorrentes na poética drummondiana, a qual reflete o sentimento absoluto, abstrato, universal: o amor, o erotismo e o desejo nos poemas escolhidos como corpus deste trabalho. Analisaremos o olhar drummondiano sobre a representação da mulher em quatro poemas de sua autoria: “Cabaré Mineiro”, “Sentimental”, “Iniciação Amorosa” e “Balada do Amor Através das Idades”. O estudo será feito a partir de levantamento bibliográfico e análise dos poemas. Do ponto de vista teórico, buscamos o embasamento nas teorias de alguns críticos e teóricos da literatura e, especificamente, de Drummond, e também em algumas citações da Sagrada Escritura.

Palavras-Chave: Literatura Brasileira, Poesia, Mulher, Carlos Drummond de Andrade.


Resumen
  
El presente artículo está centrado en algunos poemas del libro Alguna Poesia,del autor Carlos Drummond de Andrade, con el objetivo de analisar la mujer dentro del Modernismo y discutir los desdoblamientos y articulaciones de una de las imágenes más comunes en la poética drummondiana, la cual refleja el sentimiento absoluto, abstracto, universal: el amor, el erotismo y el deseo en los poemas escojidos como corpus de este trabajo. Analisaremos el mirar drummondiano sobre la representación de la mujer em cuatro poemas de su autoría: “Cabaré Minero”, “Sentimental”, “Iniciación Amorosa” e “Balada del Amor Através de las Idades”. El estudio será hecho a partir de levantamiento bibliográfico y analisis de los poemas. Del punto de vista teórico, buscamos el embasamiento en las teorías de algunos crícticos y teóricos de la literatura y, especificamiente, en Drummond, y también en algumas citaciones de la Sagrada Escritura.


 Palabras Clave: Literatura Brasileña, Poesía, Mujer, Carlos Drummond de Andrade. 


  1. Introdução

O presente estudo objetiva a análise acerca da representação da mulher na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Diversas razões motivam a escolha do tema objeto desta pesquisa, figurando sua importância não apenas para o âmbito acadêmico, mas também para a sociedade em geral.
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1930, apresenta todo o espírito revolucionário do Modernismo aliado ao humor, à ironia e ao dom de surpreender que caracteriza um dos maiores poetas da língua portuguesa. Alguma Poesia foi escrito sob o ímpeto da modernidade de 1922, pratica o poema-piada (gênero poético que apresenta escrita curta, com humor), utiliza os coloquialismos divulgados pela estética, cultiva a poesia do cotidiano, repudiando as tendências parnasiano-simbolistas que dominavam a poesia até então. No entanto, o poema-piada de Drummond é antes um desabafo de um tímido que procura disfarçar no humor os sentimentos que o amarguravam.
Vivendo durante praticamente todo o século XX, esse mineiro de Itabira deixou uma das obras mais significativas da literatura brasileira. Influenciado inicialmente pelos poetas paulistas Oswald e Mário de Andrade, que conhece em 1924, e por Manuel Bandeira, a quem, no mesmo ano, envia seus poemas, publicou seu primeiro livro, Alguma Poesia, com uma linguagem simples, acessível, criativa e madura. Portanto, antes de ser uma obra inaugural do que se iria produzir a partir da década de 30, trata-se de um produto da fase dita heroica, combativa e programática do Modernismo brasileiro, já que foi gerada em meio às acirradas disputas que seguiram à explosão nacional do movimento, após a Semana da Arte Moderna de 1922.
Utilizando a linguagem coloquial do primeiro Modernismo, os poemas do livro em análise são escritos em versos livres: sem métrica regular. A rima só aparece quando usada ironicamente: “Mariquita, dá cá o pito/ no teu pito está o infinito” (“Toada do Amor”, in Alguma Poesia, Andrade, 2009, p.25).
No trecho acima, o poeta repete o tema do humor aliado à ironia, com um dístico final, de sabor quase folclórico, em métrica coincidentemente de oito sílabas, sugerindo variadas interpretações. A repetição invertida da palavra “pito” é uma das figuras retóricas preferidas de Drummond. Desnecessário enfatizar o sabor coloquial desses versos. O que talvez mereça observação seja o final do verso (infinito), com evidente sentido desestruturador de um possível sentimentalismo romântico que pode, eventualmente, perpassar os versos e que a retórica modernista desnega.
Certas imagens na obra de um poeta parecem impor-se mais que outras. Adquirem independência, ganham autonomia de voo, ampliam seu campo de significações.
No caso de Drummond, a mulher, além de ser muito importante em sua poesia, também é uma imagem que perpassa insistentemente, é quase uma obsessão, em toda essa obra, seja em verso, seja em prosa. O poeta debruça-se sobre as eras passadas, a fim de retirar delas, como de um alimento, a substância a ser trabalhada pela memória.
Carlos Drummond abstém-se frequentemente da acomodação com o mundo real, embora deixe escapar, em versos ou em cantos nostálgicos, as recordações da infância ou as lembranças paradisíacas da cidade natal. Assim, a mulher, por exemplo, pode ser mito e sonho; o mito pode traduzir o sonho e a mulher, e, finalmente, o sonho pode representar o mito e a mulher.
As mulheres se confundem. As moças que povoam as vias urbanas por onde passeia o olhar do poeta participam do mesmo registro cênico das atrizes: a avenida torna-se palco, lugar de exibição, propício a fazer circular olhares e poses. Essas mulheres drummondianas aparecem como figuras de sonho, reservadas, deslizantes, celestes, sublimes, figuras que a mão jamais alcança.
Na mitologia drummondiana, são ninfas[4], sereias, moças de chapéu e sombrinhas, todas elas figuras inatingíveis e inalcançáveis. Símbolos de promessa sempre adiada luzem altas, nas janelas. Apreendidas pelo olhar da memória, transformados em ícones, esses relevos e formas adquirem outro estatuto, o da escrita, e tornam-se constelações de letras, marcas impressas abertas à significação.
Sendo assim, a poesia rompe os limites da lógica e leva o homem ao exercício da fantasia e da liberdade, elementos que sempre levou a tradição a considerar o poeta como um indivíduo sonhador e extremamente imaginativo.
O amor em Drummond, representado através da “mulher”, é uma amarga forma de conhecimento dos outros e de si próprio e muitas vezes é representado como definitivo ou passageiro, prazer ou dor, mas sempre é considerado pelo poeta como sentimento maior.
A obra poética de Carlos Drummond de Andrade, além de retratar a mulher, foco do nosso estudo, de forma direta ou indireta, está repleta de poemas que se referem a Minas Gerais e ao apego do poeta com a sua terra natal. Portanto, essa temática pode ser percebida a olhos vistos e se revela de extrema importância. É através do sonho, como nos diz Antonio Candido (1991, p.109), que o poeta nos introduz numa das grandes manifestações de sua inquietude: a busca do passado, através da família e da paisagem natal.
Certamente, para Drummond não teria sido sem dor o desligamento da terra de Minas e o salto para a nova vida-atlântica no Rio de Janeiro. É possível que resulte daí a saudade de uma pátria imaginária, que dá o tom pungente dessa prece de mineiro no Rio:

Espírito de Minas me visita,
e sobre a confusão desta cidade,
onde voz e buzina se confundem,
lança seu claro raio ordenador:
conserva em mim ao menos a metade 
do que fui de nascença e a vida esgarça.
                  (ANDRADE, 1969, p.230).

Com base no trecho acima, percebe-se que Itabira é um brilho agudo na memória do poeta. Ela é a miragem do que ficou perdido na infância. Minas, de alguma forma, é Drummond. Quando ele a recupera na imutabilidade do tempo, verifica que ela não sai do “meio do caminho”, porque suas “retinas tão fatigadas” não podem esquecê-la. Mais do que palavra ou lugar, Minas passa a representar todo um universo de significados e de significantes, pessoas, sentimentos, histórias, etc. Este poema dá forma àquele universo que se conhece pelo nome de “mineiridade”. Um universo que é acima de tudo místico e, portanto, fundamentalmente, simbólico. O poeta sente saudade da terra natal, da pátria querida, que se transforma no símbolo da atmosfera cultural e afetiva vivida pelo poeta.  
As raízes itabiranas estarão sempre presentes em Drummond fazendo com que seu lirismo, em virtude dessa raiz, apresente características e circunstâncias exemplarmente brasileiras, identificando-se com os valores tradicionais de sua gente. O poeta confessa que é triste, mas declara com franqueza que é orgulhoso e forte. Situação que o tornou gauche[5], traço característico de sua fisionomia moral e artística. Mesmo o poeta nos dizendo que a foto de Itabira na parede é apenas uma fotografia, sabemos que não é uma imagem qualquer: é um retrato que dói.
            Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, Itabira significa para o poeta o cruzamento de três imagens; “família-terra-infância”. O que interessa para o poeta é o invisível e o imaginário, como ele mesmo nos diz em uma crônica denominada “Antigo”, pertencente à obra Boitempo: “Nossa infância em geral constitui-se de bens mofinos e episódicos, que só para nós se identificam com a mais louca fantasia; há, é certo, um meio de transmitir essa herança personalíssima: a vida poética”. (SANT’ ANNA, 1992, p.101). Portanto, como nos postula o crítico:

Itabira é ele mesmo, o passado de Itabira é a projeção de si mesmo no futuro. Itabira, por conseguinte, é a projeção de si mesmo, o passado de Itabira é o seu passado, o futuro de Itabira, por conseguinte é a projeção de si mesmo no futuro. Itabira é principalmente a polis do poeta. Ela é a soma da cidade e da região, uma verdadeira cidade-estado no topo do tempo. (SANT’ANNA, 1992, p.101).


Narrar é criar, através da fala da criança, que o adulto foi, e continua sendo passagens e vias de comunicação entre presente e passado, entre fora e dentro, o que só pode ser feito recorrendo-se às palavras. Poemas de ontem conversam com poemas de hoje e conversarão com os que ainda habitam o limbo. Assuntos prediletos, tons, visões de mundo, estilos, opções estéticas, contrariedades. São várias e múltiplas as aproximações. Não há poeta que não dialogue suas intimidades com outras tantas.
Nos poemas escolhidos como corpus dessa pesquisa, a mulher é a figura central. Durante anos, a mulher foi vista como sinônimo de delicadeza, um ser angelical, intocável, virginal e distante. Em Drummond, encontramos, também, a mulher transcendental, sublime, metafísica. Nada é mostrado, tudo é sugerido e é aqui que a poesia mergulha mais profundamente, principalmente quando fala da “mulher”. Com a presença de muita musicalidade tratam da figura “feminina” de forma subjetiva, individual, particular.
Segundo a Bíblia Sagrada (Gn 2, 21 – 22, ano 2000), Deus soube presentear muito bem, quando recompensou Adão com a obra prima que nenhum escultor soube talhar tão perfeitamente, a sua Eva. É inegável que a sua magia enfeitiça, jogando o homem no precipício, como foi o caso do próprio Adão quando foi incitado por Eva a comer a maçã proibida pelo seu superior, quando estava em seu bosque. A história relata muitos e muitos casos em que a mulher conseguiu, com a sua astúcia angelical, acusar os homens com força e poder descomunal.
Na obra de Drummond, em especial nos poemas do livro Alguma Poesia, a mulher, muitas vezes, nos é apresentada animalescamente como imagem de degradação. A prostituta, aquela que vende o corpo, surge como dançarina espanhola: corpo gordo picado de mosquito (ANDRADE, 2009, p.97.). Utilizando-se de uma linguagem que desqualifica a imagem feminina, o eu-lírico traça o perfil de uma mulher, através da descrição, que pertence a uma classe condenada pela sociedade, porém é o centro das atenções masculinas no ambiente em que está colocada.  
Veremos, neste estudo, diversos perfis de mulher, a representação daquela que Drummond coloca como figura central na sua poesia.
Drummond é universal: capta as dores e sentimentos do mundo, fala do amor e expressa indignação; soube melhor que ninguém falar da perda, aquele sentimento que experimentamos ao “amar depois de perder” e, assumidamente poeta, foi capaz de amar e enriquecer a língua portuguesa, encantando e desencantando palavras.
 Para enriquecer nosso trabalho, empregamos alguns conceitos de teóricos sobre a Literatura Brasileira que nos foram imprescindíveis para tecermos a análise, sobretudo os autores de renome tais como: Alfredo Bossi (1987), Massaud Moisés (1987), Rita de Cássia Barbosa (1994), Antônio Houaiss (1993), Michelle Perrot (1998), Affonso Romano de Sant’Anna (1992), Antonio Candido (1991), Sergius Gonzaga (1995), dentre outros.   
Além do plano introdutório, em que está exposto com maior precisão o objeto de estudo e as estratégias utilizadas para o desenvolvimento da pesquisa, o artigo está estruturado em tópicos, com a seguinte disposição:
Pressupostos Teóricos: São apresentados os fundamentos teóricos do trabalho, objetivando a discussão e a análise crítica da situação problemática, assim como foi feita a escolha dos autores que serviram de base para os fundamentos do trabalho.
 Sujeito Literário: A Mulher e Análise dos Poemas: Nesse tópico, são analisados os poemas selecionados de Drummond e algumas citações de autores renomados, tomando como ponto referencial a representação da mulher, demonstrando como a poesia, sendo marcada pelo apelo visual, foi e continua sendo importante para a literatura brasileira.
Considerações Finais: Apresentamos a síntese final e a exposição dos resultados encontrados através da pesquisa e recomendações.
 Este trabalho apresenta, ao final, a análise e interpretação dos resultados com base em pesquisas bibliográficas e, especialmente, com base em alguns poemas do livro Alguma Poesia.

2. Pressupostos Teóricos

Todos os críticos parecem concordar quando dizem que Drummond tem sempre algo a esconder na sua poética, que o seu conteúdo, na verdade, está não na simplicidade de suas palavras, mas na capacidade de ocultar o conteúdo no seu humor e ironia, conforme Gonzaga: “O anedótico esconde o filosofar”. (GONZAGA, 1995, p.202). 
O estilo complexo do nosso poeta tomou uma forma de vocabulário simples, linguagem direta sem voltas e delongas, pobre em metáforas, nada clássico, como diz Candido “o modo espontâneo com que este fala de si, dos seus hábitos, amores, família, amigos, transformando qualquer assunto em poesia pelo simples fato de tocá-lo” (CANDIDO, 1991, p. 97); e que, por sua vez, nos instiga, a todo instante, por apresentar dificuldade em seu discurso devido à multiplicidade de ângulos e das inúmeras faces de seus poemas, e devido ao humor que percorre quase todos eles, induzindo-nos a uma reflexão causada pela provocação. Drummond é extremamente intertextual e tem uma poesia com objetivo social e individual, deixa transparecer nitidamente a inquietude na sua dor e insatisfação, gerando assuntos derivados como a morte e a decepção, que são muito comuns na sua poética, como nos afirma Candido “sua obra é sempre regida por inquietudes poéticas que proveem umas das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egoísmo profundo, tem como consequência uma exposição mitológica da personalidade” (CANDIDO, 1991, p. 96).
Desde os primeiros livros, Drummond trabalha com dois elementos temáticos que vão acompanhá-lo por toda a sua obra: a ironia e a confissão. Esses elementos não são tratados com tranquilidade, pelo contrário, estão sempre em choque: um é obstruído pelo outro que por sua vez pode ser interrompido pelo primeiro. Este jogo é manejado como arma de defesa e ocultação: o poeta “escondeu a timidez, o pudor, o lirismo na cerca de espinhos da ironia” (MOISÉS, 1987, p.235). Esses dois elementos visitam toda a obra de Drummond e se conjugam aos diferentes temas que compõem a sua poesia. Dos temas abordados pelo poeta em sua trajetória poética, destacamos o da mulher.
É importante ressaltar que, na obra de Carlos Drummond de Andrade, percebem-se as várias tendências modernistas. Seu trabalho inicial apresenta as características básicas do Modernismo, sem efetivamente aderir de corpo e alma ao movimento liderado pelos “Andrades” de São Paulo.
Drummond é senhor de um projeto literário bem definido, isso quer dizer que tudo o que escreveu não foi por obra do acaso. Os críticos costumam identificar fases que variam de duas a cinco em sua produção literária. Essa divisão obedece a critérios temáticos e mudanças de atitudes que ocorrem a cada década.
Pode-se dizer ainda que, no todo, a sua obra é tradutora de um universo temático que denuncia um homem sensibilizado com as grandes preocupações de seu tempo, de sua época. É clara em sua poesia a ideia de luta: ora com a palavra, ora com o mundo, ora com os sentimentos, ora com ele mesmo.
Como exemplo desse vasto universo, vemos em “Sentimental”, publicado no livro Alguma Poesia, um esboço narrativo em primeira pessoa:

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão,
no prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho. (ANDRADE, 2009, p. 45).


Nesse fragmento do discurso do poeta, podemos observar os recursos utilizados para seduzir o leitor. Em primeiro lugar, a repetição de verbos no imperativo dentro do mesmo campo semântico – Ex: escreve, trabalha; serve de reforço ao convite inicial. Também a enumeração dos elementos a serem relevados assim como o número de adjetivos usados para descrevê-los: sublime, formidável, total, singular; reforça o pedido.
Ainda nesse poema, percebemos que o poeta brinca como uma criança, desenhando criativamente o nome de sua amada com as letras da sopa de macarrão até quando alguém, provavelmente um adulto, lhe interrompe a brincadeira: “Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!”, fazendo com que o poeta volte à realidade. Notamos também que a palavra “macarrão” destrói a expectativa inicial, criada pelo título e pelo primeiro verso do poema. Esperar-se-ia que o eu - lírico escrevesse com letras mais “poéticas”. Ele, no entanto, o faz com as prosaicas letrinhas de macarrão, ao tomar uma sopa. Poderíamos dizer que, neste poema, Drummond inscreve o sentimento amoroso no convívio cotidiano. Durante uma prosaica refeição, o eu-lírico sonha com a mulher amada, enquanto tudo ao seu redor contribui para a proibição deste espírito “sentimental”.
Em Alguma Poesia, não há texto que parta de uma abstração, de um sentimento geral, de uma sensação difusa, de um desejo vago ou de uma pretensão conceitual. O poeta lida com coisas e situações concretas, extraídas da observação irônica dos fatos. Trata-se de uma espécie de poética do empirismo. Todavia, pouquíssimas vezes os textos se esgotam no particular. Em quase todos, há uma conclusão generalizante, que resulta num conceito ou numa síntese conclusiva sobre a vida.
Diante dos pressupostos apresentados, realizamos uma análise dos poemas do autor em estudo, que falam sobre a mulher, especialmente nos poemas: “Sentimental”, “Iniciação Amorosa”, “Balada do Amor Através das Idades” e “Cabaré Mineiro”. 
 A partir da análise sobre a representação poética da mulher, buscamos detectar a grande diferença introduzida pelos poemas drummondianos, de uma mulher desejosa, sentimental, especial, que provoca surpresa e admiração, mas que, de alguma forma, às vezes, foge da procura masculina, não se rende. 
Cabe salientar, ainda, que nos poemas que serão analisados, a reapresentação da figura feminina surge marcada pelos signos positivo e negativo. A mulher é vista com certa intranquilidade pelo poeta. Desde aquelas que só se doam por prazer ou por dinheiro às que parecem mais ingênuas, o poeta nos apresenta como representação do coletivo. São múltiplas figuras numa só: lavadeiras, dançarinas, serviçal da família.
Em nenhum dos poemas que foram analisados, pode-se perceber a imagem particularizada de uma mulher, o objeto amoroso propriamente dito. O feminino entra na poesia de Drummond como objeto de desejo. Não há musas inspiradoras, nem subjetivismos apaixonados. A presença da figura feminina nos poemas possui multiface. O autor expõe a intimidade feminina deixando explícitas as partes íntimas como pernas, maminhas, tetas (“Iniciação Amorosa”); coxas, nádegas, tetas (“Cabaré Mineiro”); a mulher pula, dança, rema; poema esse que nos leva ainda a fazer duas interpretações da dançarina: ela é Espanhola ou de Montes Claros?, (“Balada do Amor Através das Idades”), etc.
Se a tradição patriarcal representou a mulher ora como o ser perfeito, dotado de qualidades que nada mais são que idealizações, ora como o ser demoníaco, a Eva do Éden capaz de ludibriar o homem e levá-lo para o abismo, a poesia de Carlos Drummond de Andrade vai além dessas divisões, advogando a representação de um feminino mais complexo e, cremos, mais condizente com a realidade de todo e qualquer sujeito mulher inserido no meio social.   
Ainda segundo Massaud Moisés, “na segunda fase do Modernismo Brasileiro, Drummond exibe a mulher em seus poemas de forma audaciosa, perigosa, em que se explora o aspecto físico do amor” (MASSAUD, 1987, p.200), mudando assim a sua forma de representação, se compararmos à fase anterior.  


 3. Sujeito Literário: A Mulher e Análise da Obra

O Modernismo representou uma verdadeira renovação da linguagem, na busca de experimentação, na liberdade criadora e na ruptura com o passado. Para os modernistas, simbolizados em Carlos Drummond de Andrade, a prática da poesia tem que ser (ou tem que ter) uma reflexão consciente dos problemas da linguagem, das suas limitações e possibilidades. Além disso, veem no poeta um sujeito criador consciente do texto literário.
O Modernismo da primeira geração deixou marcas nas gerações seguintes, como se observa, em geral, uma maior liberdade linguística, a desconstrução literária e o introspectivismo. Esses novos elementos foram muito bem explorados por Drummond (escrita mais lírica), pelos romancistas de 30, na prosa intimista de Clarice Lispector, pelos tropicalistas que são motivo de inspiração até hoje na produção contemporânea.
Após relembrarmos rapidamente a temática do amor e a “mulher” entre o século XIX e parte do século XX, chegou a hora de mostrar como Drummond, com muito humor e ironia, consegue ser irreverente, construindo diversos poemas, parodiando todas essas características vistas anteriormente.
O poema “Iniciação Amorosa”, por exemplo, sugere pelo título as primeiras experiências amorosas. Pertence ao seu primeiro livro publicado. Como nos afirma Barbosa, “É neste livro que o poeta ensaia os primeiros passos no gênero de poesia que mais tarde assumiria, mas se recusaria a publicar: a poesia erótica” (BARBOSA, 1994, p.49).
            O erotismo se insinua com ingenuidade adolescente nas pernas morenas da lavadeira, que são observadas com admiração. O poema sugere um clima de não se ter nada para fazer: uma rede, um dia quente, árvores; a rede entre duas mangueiras. E é nesta atmosfera de sesta interiorana que a imagem das pernas da lavadeira sugere um convite a preencher o ócio.
            A mulher figura neste poema como aquela que insinua as primeiras bolinações, as carícias mais quentes da puberdade; geralmente a agregada, a serviçal da família. Num ritmo lento, vocabulário sugestivo, a imagem se refaz e nos transporta para uma preguiçosa tarde, sem nada para fazer, só resta admirar as pernas da lavadeira. O ataque erótico tem o efeito de violação do proibido e leva o eu-lírico a uma espécie de autopunição. Veja-se parte do poema:


A rede virou
o mundo afundou
depois fui para a cama
febre 40 graus febre.
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas,
girava no espaço verde.
 (ANDRADE, 2009, p.93).


            Nesse trecho, percebe-se que a febre erótica se transforma em febre doentia que leva o eu-lírico a um estado de alucinação. Nada existe no mundo a não ser as tetas imensas da lavadeira. O início do poema aponta para um des(compromisso), uma tranquilidade, uma calma,  porém, pode-se observar que, a partir da estrofe acima, toda essa calmaria se transforma num vertiginoso furacão. Percebe-se também que a atmosfera tranquila se desfaz, a ingenuidade do voyeur[6] se transforma num vulcão ardente que se confunde com a febre punitiva.
 O aspecto erótico de Alguma Poesia centra-se especialmente nas pernas e nas tetas: “E como não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas da lavadeira”. (ANDRADE, 2009, p.93). O erótico já estava em seus olhos, estava toda a sua obscenidade. Seu lirismo ainda não permitia e seu mundo insistia, senão talvez já aparecessem os lábios da mulher nas primeiras poesias.
            Nos poemas de Alguma Poesia, o eu-lírico constantemente vai se perguntar por que os desejos fazem com que ele se afaste da pureza, que faz com que ele se desvirtue. Seu coração pergunta, mas seus olhos também são gauches, são olhos que verão mais fundo.
            Há ainda, na obra em estudo, o grotesco do sexo, que vai combater diretamente com a ideia de castidade, como em “Cabaré Mineiro”:

A dançarina espanhola de Montes Claros
Dança e redança na sala mestiça.
Cem olhos morenos estão despindo
Seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita.
(ANDRADE, 2009, p.97).


O poema inicia-se com a definição da dançarina, ela é espanhola e de Montes Claros. Os dois adjetivos formam um conjunto que permite duas leituras: pode ser uma dançarina natural da Espanha e que morava ou trabalhava em Montes Claros. Numa outra interpretação, pode ser a dançarina a imitar as dançarinas espanholas, sendo essa, porém, natural de Montes Claros. Após a inserção da dançarina no espaço da sala, o poeta passa a nos apresentar uma descrição mais pormenorizada do corpo dessa mulher. Seu corpo é gordo, e tem várias marcas de picada de mosquito. 
Ao mesmo tempo em que rebaixa as qualidades da dançarina, por outro lado, apresenta um aspecto natural da tropicalidade: a presença de mosquitos, notadamente durante a noite. Assim, a dançarina espanhola de Montes Claros tem defeitos, mas, no caso, as picadas são marcas devidas ao ambiente em que exercita sua arte, no cabaré de uma cidade interiorana.
            De acordo com Michelle Perrot, historiadora francesa e professora emérita de História Literária Contemporânea na Universidade de Paris, no século XX, assistimos à luta da mulher pela queda de preconceitos sexuais, sociais e também pela ascensão do direito à igualdade.
            A mulher, durante anos, foi vista como sinônimo de delicadeza. A situação de submissão da mulher é um fenômeno histórico, em que esta sofreu um processo de exclusão e diminuição de seu papel social. Sobre isso, nos acrescenta Michelle:

“Historicamente, a figura feminina foi sendo associada aos cuidados domésticos e familiares, herança de uma sociedade patriarcal, tornando-a, assim, inferior dentro da hierarquia familiar e sacrificando, nesta perspectiva, sua própria identidade, pois de tanto ser obrigada ideologicamente a viver sob a máscara da aceitação dos valores hegemônicos, perdia-se de si mesma”. (PERROT, 1998, p.124).


Analisando o sujeito literário “mulher”, percebemos que Drummond mescla ficção e realidade, além de fazer uma crítica à sociedade da época. Nossa proposta é dar uma pequena contribuição para o reconhecimento da história feminina presente na literatura, partindo de um tema polêmico que envolve comportamento e sexualidade. Ao considerar o comportamento da mulher como de uma mulher desejosa, leviana, alienada, avarenta etc, os poemas nos levam a perceber que a mesma figura como aquela que insinua as primeiras bolinações, as carícias mais quentes da puberdade.
Em Alguma Poesia, o poeta exibe sua original maneira de ver o mundo e de ver-se a si mesmo. Adotando a forma livre do verso, isto é, não sujeito à regularidade silábica nem acentual, enquadra-o, portanto, na ordem da arte visual, não auditiva. O moderno verso livre desdenha a forma e valoriza o conteúdo poético. É verdade também que, se o conteúdo é recebido com a regularidade métrica e acentual e com a melodia das rimas ricas, o verso é mais perfeito.
 Há novidade nos temas, no estilo, na estrutura. Alguma Poesia abriu um novo rumo, e um novo período, nas letras do Brasil.
Diz dele Mário de Andrade:

A análise de Alguma Poesia dá bem a medida psicológica do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drummond de Andrade pra melhor achar pelo livro o tímido que ele é. Pra ele se acomodar, carecia que não tivesse nem a sensibilidade nem a inteligência que possui. Então dava um desses tímidos, ó tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem saber o que são cuja mediocridade absoluta acaba fazendo-os felizes! Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo e ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo. (ANDRADE, 1999, p.330).   


            Passaremos, agora, à análise mais atenta dos poemas escolhidos como corpus desse estudo.


3.1. Poema “Sentimental”

Ponho-me a escrever teu nome
Com letras de macarrão,
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
E debruçados na mesa todos contemplam
Esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
Uma letra somente
para acabar teu nome!

­­­­­-Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
­­­­­­­­­­­­­
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar”.
(ANDRADE, 2009, p.45).
           

De acordo com Antônio Houaiss, nesse poema “Drummond mescla figuras do cotidiano com o sentimento de não pertencer ao mundo, com a desilusão e com a desesperança de não ter a mulher amada por perto” (HOUAISS, 1993, p.140).
Ainda segundo Houaiss, o sentimento melancólico que há no começo do poema, é quebrado quando o poeta afirma que “Neste país é proibido sonhar” (HOUAISS, 1993, p.201), levando o eu-lírico a acordar de um lindo sonho.  
Em sua poesia, o elemento onírico se confunde com o poético, e o poema “Sentimental” demonstra claramente este tipo de atitude do sonhador. Podemos dizer ainda que, neste poema, visualizamos o poeta brincando como uma criança, até que alguém lhe interrompe a brincadeira, fazendo com que volte à realidade.
O poeta reitera o lirismo, mostra-se evasivo (em um mundo de sonhos), fora da realidade. Porém, através de desarmonias bem empregadas, ele quebra com a atmosfera lírica, impondo ao eu-lírico a volta à realidade cotidiana, durante todo o poema as evasões e as voltas à realidade são mostradas alternadamente.
Podemos dizer ainda que, o poema apresenta o eu-lírico sonhando com a “mulher amada” de olhos abertos, enquanto sua sopa esfria. Os traços da modernidade estão presentes na forma livre como o poema foi escrito, nos versos brancos (sem rima) e na métrica irregular. Ou seja, os versos não possuem o mesmo número de sílabas poéticas.
            Observamos também alguns verbos no imperativo, dando uma ordem (escreve, acaba, sonha). Na última estrofe do poema “Sentimental”, é muito evidente o dom de fascinar e surpreender o leitor: “Eu estava sonhando”... E há em todas as consciências um cartaz amarelo: “Neste país é proibido sonhar” (ANDRADE, 2009, p.45). A obra poética de Drummond, de forma direta ou indireta, está cheia de poemas que se referem à criança e ao seu mundo lúdico, portanto essa temática se revela de extrema importância para nossa compreensão.
            Nessa perspectiva, talvez seja apropriado relacionar a este poema a consideração feita por Freud no que se diz respeito à criação artística, tendo a infância como base: “Os primeiros traços da atividade literária se encontram na infância”:

Cada criança que brinca se comporta como um poeta, na medida em que cria um mundo próprio, ou melhor, reorganiza seu mundo segundo uma ordem nova. Jogando (ou encenando, brincando) com a linguagem como as crianças, o escritor faria retornar sua infância, e, ao nos confrontarmos com suas perturbações, sentimos, igualmente, um grande prazer. (FREUD, 1999, pp.63-64).  


Nesse sentido, o processo da criação literária pertenceria ao mesmo campo de atividade imaginativa, com ênfase no sonho diurno e suas vinculações com a brincadeira infantil. Mas a poesia de Drummond não provém simplesmente de um desvairismo sonhador. A poesia é libertação dos sonhos, mas para que o poema se realize de forma completa, é necessário que haja o trabalho ordenador destes “sonhos” que vem de suas emoções. E era essa a linguagem que ele usava para falar e escrever sobre a mulher em suas poesias.  
Pode-se dizer ainda que a temática do “medo de amar” conduz o poeta ao recolhimento “sentimental” e à solidão. Apesar disso, a expressão poética é marcada pelo emocionalismo incontido. A mulher assume caráter sobre-humano de virgem, angelical, objeto amoroso de um encontro que, para a angústia do eu - lírico, nunca se realiza. Nota-se, também, uma voz expressiva, sentida no caminhar, esperançosa de um dia se encontrar com a mulher amada e ser feliz.
Drummond dá ao poema um tom confessional e subjetivo, parodiando com características do Romantismo (crítica social, emocionalismo, sensibilidade, imagem subjetiva do amor e da mulher, versificação livre) e ainda conclui o poema com uma crítica social “Neste país é proibido sonhar”, apontando problemas políticos da época.
Romanticamente falando, o poema leva a crer que é através do sonho que existe a melhor oportunidade para a realização carnal do amor.

3.2. Poema “Iniciação Amorosa”

A rede entre duas mangueiras
balançava no mundo profundo.